Terminei minha pequena maratona por clássicos de nossa literatura com a leitura de “O Cortiço” do Aluísio de Azevedo. O livro rende inúmeras análises que vão do racismos estrutural presente em sua narrativa à sua abordagem de dois problemas que estão presentes até hoje na maior parte das cidades brasileiras, a não universalidade da moradia digna e a precarização do trabalho.
Mas, optei, nesta breve análise, por falar não sobre estes assuntos, mas sobre a forma com que um personagem da obra em especial ilustra um fenômeno também observado em nossos dias. O personagem é João Romão e o fenômeno é a ascencao econômica de pessoas pertencentes a classes menos favorecidas, que resulta na formação de uma nova classe média.
João Romão é um Português que vem tentar a vida no Brasil, ele acaba assumindo o pequena venda onde trabalhava depois que o dono, também português, decide voltar para o país de origem e lhe entrega o controle do comércio como forma de quitação de salários atrasados. Pouco tempo depois, ao vislumbrar uma oportunidade de alavancar o seu negócio, João inicia um relacionamento e uma sociedade comercial com Bertoleza, mulher negra, ainda escrava, que fazia quentinhas para vender.
Com a ajuda de Bertoleza, que trabalha incansavelmente sete dias por semana, João prospera. Com o dinheiro do comércio e da venda de quentinhas, ele compra parte de uma pedreira e constrói moradias precárias para aluguel. Contudo, quando Miranda, vizinho da venda e do cortiço, conquista um título de nobreza, o de barão, João vê despertada em si uma grande insatisfação com tudo o que construiu. Ele é tão rico quanto Miranda, mas não tem a mesma “classe” que ele.
Diante da notícia de que Miranda dará uma grande festa para comemorar a conquista do título, João se angustia. Ao ser convidado para a festa ele reconhece que não seria capaz de se infiltrar no meio ao qual Miranda pertence. Ele não se imagina vestindo sapatos, luvas ou conversando sobre arte e política com outros homens da alta sociedade. Ele não foi educado para as regras de etiqueta, tão pouco tem conhecimento da realidade do país ou sensibilidade artística para conversar sobre o que conversam.
João ganhou muito dinheiro às custas da exploração do trabalho alheio e da aplicação de pequenos golpes, isso, no entanto não lhe torna menos parecido com as pessoas que moram em seu cortiço. O drama que ele vive vem da necessidade de se elevar, de se diferenciar dos seus, para assim ser aceito pela elite de seu tempo.
Em sua busca por um atalho para alcançar seu objetivos, João pesará a mão sobre os seus inquilinos, na esperança de que o poder exercido sobre eles lhe alce a uma posição superior. Bertoleza se apresenta, em seus devaneios, como um grande obstáculo para a realização destes intentos. Como ser aceito pela elite racista estando ainda amasiado com uma negra?
João Romão, em sua mesquinhez, avareza e ambição desmedida, em sua parca formação cultural, em sua limitação de visão para os fatos relevantes de seu tempo e em seu completo desprezo pelos que lhe servem de trampolim, se assemelha muito à significava parte da classe média atual, que se considera elite, sem o ser de fato, e insurge como antagonista dos desprivilegiados. Romão é um espelho da classe média que apoiou o golpe de 2016 e que elegeu um presidente fascista em 2018.
AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. Jaraguá do Sul: Editora Avenida, 2009.
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