O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro - 1969. Escrito e Dirigido por Glauber Rocha. Direção de Fotografia de Affonso Beato. Música Original de Marlos Nobre. Produzido por Glauber Rocha e Claude-Antoine. Antoine Films, Cinémas Associés, Glauber Rocha Comunicações Artísticas, Mapa Filmes e Munich Tele-Pool / Brasil | França | Alemanha.
Nos anos que antecederam a ebulição do Cinema Novo, acontecida no início da década de 60, a produção cinematográfica brasileira podia ser dividida em dois polos bem distintos, mas que tinham as mesmas referências: o cinema americano e o modelo comercial/industrial dos grandes estúdios. De um lado estava a Vera Cruz, companhia de produção paulista, que intentava criar em solo nacional uma estrutura cinematográfica que fosse reconhecida e valorizada no mundo todo. De outro estavam as Chanchadas produzidas em larga escala pela Atlântida, que não passavam de meras paródias do formato e da linguagem predominantes em Hollywood naquela época. Ambas as tendências tinham pouca relevância estética e nenhuma ousadia, isso devido às suas pretensões, que eram mais comerciais do que artísticas.
Durante a década de 50 a Vera Cruz investiu na exportação de profissionais do cinema europeu em busca de know how, eficiência e excelência técnica, mas isso acabou sendo um tiro que saiu pela culatra, pois apesar dos avanços técnicos que favoreceu, a vinda de tais profissionais acabou distanciando cada vez mais a produção de uma identidade nacional, que fosse capaz aproximar o público dos filmes produzidos e dos cineastas e de propiciar um diálogo aberto entre eles, tendo a obra como principal canal de comunicação (neste aspecto, os filmes produzidos pelo Amácio Mazzaropi eram uma exceção). A Atlântida e suas chanchadas se aproximavam do grande público, mas sem oferecer a ele obras que o instigassem a questionar e a intervir em sua própria realidade, dando ao invés disso apenas uma frágil variação de uma mesma fórmula, que era isenta de qualquer marca autoral ou tentativa de inovação.
Quando começam a ser produzidas as primeiras obras que seriam consideradas marcos do Cinema Novo, a Vera Cruz já estava com sua falência decretada e por isso se tornou uma espécie de modelo do que não deveria ser feito. Não por acaso, o slogam "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", defendido por Glauber Rocha (um dos nomes seminais da nova escola), contrariava tudo aquilo em que os executivos da mega produtora paulista tinham acreditado e investido; o que cineastas como ele, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues e Ruy Guerra defendiam eram um rompimento com o modelo vigente até então e o advento de um novo cinema que estivesse próximo da realidade do país, tanto em suas temáticas e reflexões, quanto nas questões econômicas indissociáveis do processo de produção.
Eles acreditavam que era possível fazer filmes de baixo orçamento, rodando-os em locações e não em grandes estúdios, usando a criatividade ao invés do dinheiro para viabilizar todo o processo. Acima de tudo, eles defendiam uma reestruturação do formato e da linguagem dos filmes nacionais, o que os libertaria da influência de Hollywood, que era considerada por eles altamente nociva. Em tais posicionamentos, é possível notar a influência do contexto histórico, de outras escolas cinematográficas, como o Neorrealismo Italiano e a Nouvelle Vague Francesa, e ainda de outras correntes de pensamentos e vanguardas, como o antropofagismo modernista, o barroco e a arte engajada defendida pelos Centros Populares de Cultura (os CPCs).
A negação do modelo anterior, a tentativa de ruptura com o convencionalismo e a crítica ao imperialismo cultural - elementos característicos do Cinema Novo - podem ser notados com relativa facilidade em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), o quarto longa-metragem dirigido por Glauber Rocha, mas o fato dele deixar evidente cada um destes aspectos não quer dizer que ele seja um filme de 'fácil' assimilação. A complexidade de suas inferências e dos inúmeros simbolismos presentes em sua trama o tornam uma obra de difícil digestão, principalmente para aqueles que não conhecem as origens e a proposta da marca que Glauber tentava imprimir em cada uma de seus filmes.
O cineasta retoma nesta obra questões que já tinham sido abordadas em seus trabalhos anteriores, como o conflito entre classes, a repressão imposta pelas instituições e a resistência cultural daqueles que estão à margem. A história contada pelo filme gira em torno de Antonio das Mortes (Maurício do Valle), personagem que já havia aparecido em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), ele é um jagunço matador de cangaceiros que atua a mando de coronéis e da igreja. Depois de matar Corisco, braço direito de Lampião e último cangaceiro, sua vida perde o propósito e ele entra em uma espécie de crise existencial, que o faz repensar, pela primeira vez, sua própria conduta e o significado de suas ações.
O aparecimento de um jovem chamado Coirana (Lorival Pariz), que diz ser a reencarnação do próprio Lampião, faz com que Antônio das Mortes parta em uma nova missão, talvez a sua última. À pedido do covarde delegado Mattos (Hugo Carvana) ele vai para Jardim das Piranhas, uma pequena cidade do sertão nordestino onde o suposto novo chefe do cangaço se encontra. Tal como Antonius Block, o personagem central de O Sétimo Selo (1957) de Ingmar Bargman, o jagunço se depara com um enorme vazio ao olhar para o seu passado e para cada uma das atrocidades que cometera em nome de uma causa que nunca teve qualquer sentido para ele. Antonio e Antonius são muito parecidos, ambos buscam paz de espírito, uma razão maior para as suas respectivas existências e alguma redenção para os erros que outrora cometeram.
Das Mortes é um personagem emblemático e isso se deve à sua capacidade de representar a sociedade da época como um todo. Através da negação do personagem em enxergar a sua própria condição e a estrutura da sociedade na qual ele está inserido, o cineasta estabelece um paralelo com a postura do povo que se nega a reconhecer aquilo que o oprime, se colocando muitas vezes em uma posição que reforça, ao invés de combater, toda a conjuntura social que o agride. Outros personagens do filme também são dotados de elementos que os tornam potenciais alegorias de uma classe ou fato social. O Coronel Horácio (Joffre Soares), um fazendeiro velho e cego, é uma espécie de autoridade ilegítima do local, ele representa toda a estrutura social arcaica que sustenta e perpetua a desigualdade.
O delegado Mattos, por sua vez, representa a ascensão de uma nova nova estrutura de poder, tão opressiva quanto a anterior, é interessante reparar que no discurso dele estão sempre presentes palavras como industrialização e progresso. Ele representa a transição de uma economia latifundiária (representada pelo Coronel Horácio) para uma industrialista, fomentada, vejam bem, justamente pela política imperialista dos Estados Unidos. Coirana, o cangaceiro, é a reconstrução 'cinemanovista' do herói nacional, ele herda de um Lampião mitificado a disposição de lutar pela justiça social, o messianismo e o apreço do povo pobre que o segue em uma espécie de romaria. O roteiro associa Coirana à um messias, que surge para anunciar uma boa nova e trazer esperança para aqueles que já não a têm, ele seria uma espécie de cristo dos desvalidos, um líder em torno do qual os excluídos e oprimidos se reúnem em busca de um sentido para as suas próprias vidas.
Laura (Odete Lara), a esposa do Coronel Horácio, representa uma parcela da população que é movida apenas pelos próprios interesses, que se associa aos opressores em troca de um mínimo de conforto e de regalias (mesmo sabendo que isso não lhe basta). Há ainda um outro personagem emblemático, o professor vivido por Othon Bastos, ele, que é uma espécie de alter-ego do Glauber Rocha, representa um olhar analítico sobre os eventos retratados pelo filme; ele acompanha Antonio das Mortes e testemunha a catarse que este experimenta no momento em que encontra sua redenção e, não por acaso, no fim das contas acaba nas mãos dele (do professor) a responsabilidade de dar continuidade à transformação social que fora iniciada por outros personagens.
Integrado à marcha lúgubre dos desvalidos, está o povo, que consegue ensaiar um último levante que intenta romper com todos os poderes estabelecidos até então. Este povo simples começa como um mero coadjuvante e termina como um dos protagonistas da história contada. Suas manifestações culturais e religiosas, são usados por Glauber como um contraponto para a aniquilação da identidade nacional, que é representada pelo já citado imperialismo americano e pela opressão dos mais pobres por aqueles que detêm o poder. Reconhecer o protagonismo dos populares nos ajuda a compreender quem de fato são o dragão e o santo ao qual título faz referência; creio que o dragão seja uma metáfora para a opressão social, enquanto o santo guerreiro não é outro senão o povo unido e ciente de sua própria força.
Glauber Rocha demonstra aqui o mesmo que já havia demonstrado em seus primeiros filmes, um total domínio de sua própria expressão, enquanto cineasta autoral, e pleno controle sobre cada figura de linguagem que usa, extraindo delas significados diversos que se entrelaçam no decorrer do filme e se completam ao final dele. O domínio de técnica demonstrando por ele também é indiscutível, o que pode ser notado na composição de cada uma das cenas, na montagem e no uso da fotografia e da trilha sonora como imprescindíveis elementos da narrativa. O mérito de Glauber pode ser percebido também na forma com que ele mescla de forma harmônica à trama diversos elementos que ajudam a compor a dita identidade nacional, como as superstições, o folclore e o sincretismo religioso.
Todo o elenco principal, que se vale de elementos teatrais na composição de seus personagens, demonstra pleno envolvimento com aquilo a que o filme se propõe e isso pode ser notado em praticamente todas as cenas, nas quais o que se destaca não é a 'verdade' das interpretações, mas o potencial alegórico que elas conferem aos personagens. Destaco ainda a participação do povo visivelmente sofrido, que aparece inicialmente no filme como coadjuvante, seus rostos abatidos e seus olhares tristes e carentes de esperança (que vejo como uma herança do neorrealismo italiano) demoram para sair de nosso imaginário, tamanho o impacto que provocam... Ao assisti-lo prestem atenção na cena do duelo entre Antonio das Mortes e Coirana, que foi toda rodada em apenas um take, e na passagem em que o jovem cangaceiro/messias canta sobra a sua via crúcis.
Não creio que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro represente de fato um rompimento com o cinema americano, o que Glauber Rocha faz é uma desconstrução do formato hollywoodiano, tal como Godard o fizera poucos anos antes, e uma remontagem de seus elementos sob um formato totalmente novo, no qual ele acrescenta os já citados elementos da cultura popular brasileira e os mistura com referências a clássicos do westerns, um de seus gêneros favoritos. A ousadia estética colocou Glauber entre os maiores nomes do cinema de sua época, lugar onde deveria estar até hoje, se nós brasileiros não fossemos tão cruéis com o seu legado, que é hoje, em tempos de antíteses políticas e sociais, mais atual do nunca.
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro ganhou em Cannes o prêmio de Melhor Diretor
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
De Glauber, gosto mais de Deus e o diabo na terra do sol, pois retrata bem um passado que ainda está presente e incomoda. O dragão da maldade... não é muito do meu gosto, por todos os simbolismos e a maneira ritualística de apresentar a ação.
ResponderExcluirAbraços!
Não há como negar a importância de Glauber Rocha para o cinema brasileiro, mas seus filmes são muito herméticos e às vezes incompreensíveis. Traduzindo: chatos.
ResponderExcluirglauber me chateia, confesso.
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Bruno,
ResponderExcluirTudo bem? Gosto do Glauber Rocha pela coragem e luta em suas produções. Esse filme tem o seu mérito e revela luta e glória no processo de tomada de decisão.
Beijos e bom domingo!
Gostei Bruno! Resenha competente e esmiuçada sobre o Cinema Nacional, destacando com primor e cuidado, o impacto dos filmes desse grande homem, Gláuber Rocha, um legítimo brasileiro e cineasta político-revolucionário, que depois de algum tempo produzindo alguns bons filmes e reconhecidamente premiado lá fora.., recolheu-se triste e decepcionado com o crescimento da repressão em nosso país! Acho que vi todos os filmes dele, mas gostei muito de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "Terra em Transe", também muito bom! Tenho muito carinho e respeito pelo Gláuber, por toda a sua importância para o nosso cinema! Obrigada amigo, por nos "presentear" com essa incrível matéria! Adorei! Beijão!
ResponderExcluirGracias por compartir, buenísima reseña y magnífica película!!! La historia, la fotografía y la música las encuentro hermosas. Esta película me conmueve como pocas y cada vez que vuelvo a verla, me gusta más. No hay que caer en el error de comparar el estilo de G. Rocha con el de nadie más, pues es una impronta muy propia.
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