Abril Despedaçado - 2001. Dirigido por Walter Salles. Escrito por Walter Salles, Sérgio Machado, Karim Ainouz, João Moreira Salles e Daniela Thomas, baseado na obra de Ismail Kadare. Direção de Fotografia de Walter Carvalho. Música Original de Ed Côrtes, Antonio Pinto e Beto Villares. Produzido por Arthur Cohn. Bac Films, Dan Valley Film AG, Haut et Court e VideoFilmes / Brasil.
"Em terra de cego, quem tem um olho só, todo mundo acha que é doido...", este aforismo, dito por um dos personagens centrais de Abril Despedaçado (2001), sintetiza bem aquele que é o tema central deste que é o primeiro longa-metragem dirigido por Walter Salles após o enorme sucesso de Central do Brasil (1998). Toda a trama está alicerçada sobre a questão do fatalismo social, que na narrativa se levanta de forma opressiva travestido de costume e tradição. A história contada pelo filme se passa no ano de 1910 e está ambientada no interior do sertão nordestino (no livro do qual o roteiro foi adaptado, a trama está ambientada em uma região rural da Albânia), um lugar castigado pelo clima árido, pela falta de recursos e principalmente pelo endurecimento dos corações das pessoas, que se aniquilam em intermináveis rixas familiares motivadas pelos conflitos de terra e perpetuadas pelo ódio e pelo desejo de vingança, que ambos os lados envolvidos alimentam. No filme, a inércia e a falta de questionamentos acerca dos próprios atos impedem os personagens de se posicionarem de alguma forma contra a realidade que os oprime.
Apesar de todo o viés regionalista que Abril Despedaçado adquiriu no processo de adaptação e do fato de ele ser um filme de época, sua trama e a mensagem que ela traz consigo são universais e atemporais e isto explica a força e a urgência que a reflexão proposta por ele tem... É oportuno lembrar que a sociedade está em constante transformação, não sei se posso chamar este processo de evolução, no entanto, apontar a ausência de mudança e de subversão como algo bom é negar todas as possibilidades de aprimoramento que o 'novo' representa. Não há costume, dogma, ou moral que esteja tão consolidado que não possa ser questionado e subvertido. Entretanto, uma parcela da sociedade se apega ao conservadorismo na tentativa de preservar a ordem vigente e o statos quo, de tal modo que seus olhos se fecham para toda e qualquer possibilidade de mudança (o que pode ser visto com clareza nos dias de hoje nos discursos reacionários, que pipocam nas redes sociais quando temas polêmicos são postos em debate). É a este 'fechar de olhos', que se assemelha à uma cegueira autoinduzida, que o personagem se refere na citação reproduzida no início desta resenha.
Pacu (Ravi Ramos Lacerda), o autor da citação, é ainda uma criança, porém a clareza de sua visão o distingue de todos que estão à sua volta. Ele estava presente quando o irmão mais velho foi assassinado por um membro de uma família rival; pouco tempo depois, ele testemunhou o desgosto de Tonho (Rodrigo Santoro), o irmão do meio, que se viu obrigado pela tradição a cobrar na mesma moeda a morte do primogênito; estas são experiências dolorosas que o levam a questionar tudo aquilo em que seu pai acredita. Ciente de que está prestes a ver a ruína de sua família, uma vez que o ciclo de mortes parece não ter fim, o garoto tenta buscar alternativas e agindo de tal modo ele acaba despertando algo de novo no irmão, que também não concorda com os rumos tomados no conflito, mas não tem coragem o suficiente para escolher um outro caminho. O comodismo é o traço de personalidade mais marcante em Tonho, é ela que o impede de enxergar aquilo que Pacu já vê com tanta nitidez.
Através de uma situação relativamente simples, o roteiro constrói uma metáfora genial acerca do comodismo e da inércia dos personagens: Ainda no início do filme, vemos a família, em torno da qual a história gira, trabalhando na produção de rapadura, atividade de onde tira seu sustento. O rústico engenho que usam para moer a cana de açúcar é movido por bois, que caminham em círculo em torno do equipamento fazendo-o girar. Para que não parem e não interrompam o funcionamento da máquina, os animais são castigados com açoites, que os mantém em movimento enquanto a cana é triturada. Mais adiante, uma outra passagem mostra os bois girando ao redor do engenho, porém desta vez, não tem cana sendo moída e ninguém está trabalhando, mas, eles continuam girando porque foram condicionados para tal, o medo que eles sentem já está internalizado, o que torna dispensável o constante uso da força bruta. A limitação imposta pelo julgo, não permite que tenham outra coisa a fazer senão aquilo a que já estão acostumados.
O comportamento daqueles que são vitimados pelos conflitos de terra são similares ao do gado, que sem questionar repete aquilo para o que programado, sem ter ciência da força que tem, que seria capaz de por abaixo toda a estrutura que os aprisiona. Por meio desta brilhante metáfora, o filme retrata ainda o processo de animalização e de aniquilação da individualidade de cada um dos personagens. Como contraponto a tal situação, o roteiro aponta a arte e o conhecimento como meios através dos quais o fatalismo pode ser subvertido, na trama tais aspectos são personificados por um casal de artistas mambembes, que representam o desapego dos antigos costumes e a subversão dos valores arcaicos que sustentam e perpetuam as rixas. Tal como em O Sétimo Selo (1956) de Ingmar Bergman, o circo, que é uma expressão artística que evoca a simplicidade da cultura popular, representa um humanismo capaz de trazer sentido para uma vida vazia de significado e salvar o indivíduo de sua própria mediocridade.
Abril Despedaçado não alcançou o mesmo sucesso de Central do Brasil, o que é de certo modo justificável, uma vez que nele Salles pecou um tanto pelo excesso em alguns aspectos. Alguns pontos da trama são um tanto forçados pela nítida intenção de comover o espectador e este apelo emocional acaba enfraquecendo, em determinadas passagens, o potencial reflexivo que o filme tem. Estes pequenos problemas, no entanto, não tiram dele o seu inegável mérito, ele continua sendo um filme bem acima da média. Apesar de pecar nos pontos ora mencionados, a trama consegue nos fazer refletir sobre a temática que explora e tornar crível o drama dos personagens, sem tirar dele a poética, que se mantém presente durante todo o desenvolvimento da narrativa. As atuações constituem um dos pontos altos do longa; o Rodrigo Santoro está muito bem, não por acaso este foi o filme abriu as postas para sua carreira internacional; Ravi Ramos Lacerda, José Dumont e Rita Assemany também estão ótimos.
A fotografia, que capta tanto a beleza quanto a pobreza do sertão, e a trilha sonora, intensa e consonante com os mais diversos sentimentos retratadas na história, ajudam a compor a poética bela e ao mesmo tempo trágica do filme. Travelings e enquadramentos sutis e cuidadosos atuam diretamente na composição da narrativa, associando à ela um olhar cheio de inocência e simplicidade, como se a câmera fosse uma extensão do olhar singelo do menino Pacu... Abril Despedaçado pode não ser a obra-prima de Walter Salles, mas independente disso ele continua sendo, ao meu ver, um grandioso motivo de orgulho para o nosso cinema...
Abril Despedaçado foi indicado ao Globo de Ouro e ao Bafta na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
também dirigido por Walter Salles.
Gostei do filme, porém, acho que ele é mais perfeito em termos técnicos do que em narração.
ResponderExcluirConcordo plenamente: "orgulho para nosso cinema". O problema é que alguns só dizem que amam o cinema nacional quando é algo muito global, em tons de novela.
abs
Gosto de Diários de Motocicleta e preciso rever Central do Brasil. Esse Abril...ainda é inédito para mim.
ResponderExcluirMais uma belissima resenha meu amigo! Vc sabe mesmo falar das coisas.
ResponderExcluirEsse filme é realmente muito bonito, desses filmes que a gente assiste e fica dias pensando nele.
Só acho que no meio do filme falta um pouquinho de ritmo, mas no geral é um lindo filme!
Um abração e linda semana pra vc!
Oi Bruno
ResponderExcluirEu não assisti, mas deu vontade com a sua crítica.
Bjos.
Realmente um filme belissimo. Gosto muito.
ResponderExcluirQue bom ler esse texto sobre esse ótimo filme, aqui.
ResponderExcluirUm dos bons filmes brasileiros de um ótimo diretor do momento.
Abraços
http://eaicinefilocadevoce.blogspot.com.br/
Bruninho, tudo bem?
ResponderExcluirNão assisti ao Abril Despedaçado; mas assisti, na verdade, uma matéria bem completa sobre ele na TV a Cabo, há um bom tempo, por isso não me recordo a autoria dela, mas, sim, que exaltava a atuação de Rodrigo Santoro (sempre achei ele um excelente ator, e versátil. Concorda comigo? desses ditos "galãs" acho ele o mais talentoso), e também os planos adotados para a filmagem em certas cenas, como essa do balanço.
De minha parte, novamente, não tenho tão mais a comentar, já que, de fato, não assisti ao filme :)
Beijão e ótimos dias!
Oi Bruno,
ResponderExcluirTudo bem? Não assisti ao filme, mas ouvi falar da direção e atuação. Continuo com o meu preconceito par esse tipo de filme, mas vou ver a disponibilidade na locadora para analisar o filme.
Beijos.