Asas do Desejo (Der Himmel Über Berlin) - 1987. Dirigido por Wim Wenders. Escrito por Wim Wenders e Anatoule Dauman, inspirado pela obra poética de Rainer maria Rilke. Direção de Fotografia de Henry Alekan. Música Original de Jürgen Knieper. Produzido por Anatole Dauman e Wim Wenders. Argos, Road Movies e WDR. / Alemanha Ocidental | França.
A Alemanha estava completamente devastada ao final da 2° guerra mundial, com o término do conflito bélico um período de reconstrução interna se iniciara. De fato era um recomeço, o país precisava se reerguer fisicamente, economicamente e politicamente. A reestruturação no entanto era relativamente simples perto daquilo de mais valioso que a nação perdera, sua identidade. Isto já havia acontecido ao final da primeira guerra, o que forjara o contexto ideal para que Hitler chegasse ao poder, o ditador criara então uma pseudo identidade para o povo Alemão, baseando-se em princípios absurdos de superioridade racial. Com a derrocada da ideologia nazista, a Alemanha experimentou pela segunda vez esta crise de identidade, que ainda seria intensificada em 1949, com a divisão do país em quatro zonas de ocupação militar. As três zonas a oeste viriam a formar a República Federal da Alemanha, que se estabeleceria como um regime capitalista, enquanto a área a leste, ocupada pela União Soviética, se tornaria a República Democrática da Alemanha, e se firmaria como um estado comunista.
Os reflexos da situação política e econômica da Alemanha podem ser observados na produção cinematográfica do país das décadas seguintes. A partir dos anos 50, com o início da guerra fria, a Alemanha ocidental passaria a receber uma influência bem mais acentuada da cultura norte-americana, e nomes do cinema clássico dos Estados Unidos serviriam de base para obras de cunho mais autoral, que começavam a ser produzidas no país. Os gênero Noir e o Western foram a inspiração para o Manifesto de Oberhausen, escrito por alguns daqueles que seriam o precursores do Novo Cinema Alemão, que se propunha a recriar a produção cinematográfica do país a partir do zero, se livrando assim dos fantasmas do passado e recriando uma nova identidade artística para o país. Mas este movimento não foi só um resultado da influência americana, foi também um reflexo do que já estava acontecendo ao redor do mundo com o desbunde cultural da década de 60. Características semelhantes, além do conceito de “cinema de autor”, podem ser observadas também no Cinema Novo do Brasil, no British New Cinema da Inglaterra e na Nouvelle Vague Francesa.
Os três principais expoentes do Novo Cinema Alemão foram Werner Herzog (diretor de Fitzcarraldo), Rainer Wener Fassbinder e Wim Wenders. Wenders, diferente dos outros dois, não se contentou em apenas desconstruir o modelo de cinema hollywoodiano, que tinha até então como influencia. Após conquistar o prestígio como um dos mais importantes realizadores de seu tempo, ele decidiu se aventurar cá do outro lado do atlântico, no entanto sua tentativa de ser comercial resultou em obras apontadas como “menores” pela crítica especializada e pelo público que o respeitava pelos seus primeiros trabalhos. Demorou para que Wenders reconhece o erro que fizera ao tentar se “vender”. Depois de uma sequência de trabalhos mal sucedidos esteticamente e comercialmente, ele percebeu que seu valor estava era justamente na forma poética e nada comercial com que ele retratara o consciente coletivo alemão do período pós-guerra. Asas do Desejo (1987) é considerado uma das obras primas do diretor e foi produzido na fase que antecede o período hollywoodiano de sua carreira. Com nítidas influências do romantismo (escola literária surgida na Alemanha), o filme se mostra como uma belíssima alegoria de Berlin no período da guerra fria.
No filme, dois anjos Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) atual como vigilantes, ou anjos da guarda da cidade. Eles podem escutar os pensamentos angustiados das pessoas à sua volta e, apesar de não poderem interferir nos acontecimentos, eles tentam oferecer uma espécie de conforto espiritual aos necessitados. A presença dos anjos só é sentida por crianças e por cegos, de alguma forma estes conseguem ver além das ruínas, que são as únicas coisas que os demais conseguem enxergar. O conflito da história se inicia quando Damiel se apaixona pela trapezista Marion (Solveig Dommartin), a quem ele tentara confortar. Após conhece-la, ele passa a se sentir um ser cada vez mais limitado por não ter a capacidade de sentir aquilo que os homens sentem. A ausência do sentimento do mundo sob a perspectiva dos anjos é mostrada através de uma belíssima fotografia em preto e branco, que se diferencia da visão dos humanos, onde o mundo pode ser percebido em todas as suas cores. Para viver sua paixão e experimentar aquilo que tanto anceia, Damiel tem que negar sua imortalidade e assumir a condição humana.
Paralelamente à história protagonizada pelos anjos, vão sendo desenvolvidas tramas menores, que se materializam apenas pelo pensamento de uma pessoa de quem um dos anjos está cuidando, ou pela perspectiva dos personagens secundários, dentre eles o ator Peter Falk (que interpreta a si mesmo), o velho poeta Homero, que raramente sai de uma biblioteca pública e a própria Marion que está profundamente angustiada. Tal como Bergman em O Sétimo Selo (1956), Wenders recorre à arte circense para representar um fio de esperança e de felicidade que resta à humanidade em um mundo tão hostil. Na trama Marion perde até isso e seu estado psicológico desperta em Damiel a urgência da decisão que precisa tomar. O conflito vivido pelo personagem reside no egoísmo que seus desejos representam, uma vez que ao se tornar humano ele não poderá mais ajudar a todos (não é por acaso que ambulância passa em disparada logo após ele acordar em sua nova condição). Em uma das sequências mais memoráveis do filme, Peter Falk sente a presença de Damiel e começa um diálogo (na verdade um monólogo) com ele. O ator o fala sobre os pequenos prazeres da vida humana pela qual ele pode optar, o de desenhar, o de fumar um cigarro tomando café, o de tomar um banho, o de ser barbeado...
Após a decisão, já preanunciada, de abdicar da imortalidade, Damiel se depara com o mesmo vazio existencial que Marion experimentava, o que ele então classifica como uma doença. A trama nos propõe a seguinte reflexão: Seria este vazio inerente à condição humana? Talvez sim, mas próprio o desfecho da história nos mostra que, se não eliminado, ele pode ao menos ser amenizado. A resposta que o anjo caído encontra é a mesma buscada pelo povo alemão. Os questionamentos propostos e a resposta encontrada, conferem ao filme uma grandiosidade que poucas outras obras alcançaram e justificam cada um dos elogios que ele já recebeu... O doloroso vazio, o amor, a esperança, a saudade, a dor, o desespero, a paz... todos estes sentimentos são condensados na poética desta obra cheia de significados e analogias. Wenders construiu nos anjos uma alegoria perfeita para tecer uma observação quase onisciente sobre o consciente coletivo do povo alemão. A divisão, quase antagônica, que se dá entre o mundo dos anjos e o mundo dos homens é uma clara analogia à divisão de Berlin pelo muro.
Poucos filmes conseguiram a proeza de transitar por gêneros tão diferentes sem se perder na história que está sendo contada. Não seria nenhum erro classificá-lo como um romance, um drama, um road movie, ou até mesmo um filme político, pois ele trás consigo todas estas facetas, sendo cada uma delas construídas com uma habilidade narrativa e poética louvável. O desenrolar da trama é bem lento no início, isto aliado á linguagem poética dos diálogos entre os dois anjos e dos pensamentos humanos, podem afastar os desavisados já no início da exibição. Mas quem, como eu, vê nisso uma qualidade e não uma falha irá apreciar cada passagem do longa. Vale relembrar também aqui a participação especial de Nick Cave and The Bad Seeds, que aparecem tocando Fron Here to Eternity em uma cena em pub frequentado por Marion. Asas do Desejo ganhou uma continuação, Tão Longe, Tão Perto (1989) dirigida pelo próprio Wenders e um remake, Cidade dos Anjos (1998), protagonizado por Nicolas Cage e Meg Ryan, que não conquistaram nem de longe o mesmo reconhecimento. Corra atrás do original e não perca tempo com continuações e refilmagens! Recomendo!
Asas do Desejo ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes, tendo recebido também uma indicação à Palma de Ouro, o prêmio máximo do festival.
Assista ao trailer de Asas do Desejo no You Tube, clique AQUI!
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Um belo filme!
ResponderExcluirhttp://bauderesenhas.wordpress.com/2012/02/01/asas-do-desejo/