Lavoura Arcaica - 2001. Escrito, dirigido e produzido por Luiz Fernando Carvalho, baseado na obra de Raduan Nassar. Direção de Fotografia de Walter Carvalho. Música Original de Marco Antônio Guimarães. VideoFilmes / Brasil.
A primeira cena de Lavoura Arcaica (2001), primeiro e único filme dirigido por Luiz Fernando Carvalho, mostra André (Selton Mello), o personagem central, se masturbando de forma quase compulsiva. Ao contrário do que possa aparentar, esta não é uma passagem agressiva, muito pelo contrário, o ato é retratado de uma forma contida, quase poética. Se há um incômodo nesta sequência, ele vem não da situação em si, mas da forma com que ela é retratada. Em poucos minutos somos expostos à uma gama de significações que dizem muito sobre a trama, funcionando ainda como uma antecipação de revelações que serão feitas no decorrer dela. O personagem está estirado no chão de um quarto escuro e os enquadramentos salientam as contorções de seu corpo, que parece ansiar não pelo orgasmo, mas por expelir para fora de si algo que o angustia.
Durante toda esta sequência de abertura escutamos o barulho crescente de um trem em movimento, que constitui a primeira de uma série de metáforas geniais, construídas á partir de cada um dos elementos cinematográficos que compõem a obra. O trem simboliza numa primeira análise aquilo que André sente, algo de uma força tamanha, que não pode ser controlada. Três elementos que estão presentes neste prólogo, a compulsão sexual, a perda do autocontrole e a fuga (também representada pelo trem em movimento), antecipam aquele que será o mote da complexa trama que começará a ser desenrolada. A história se passa em meados da década de 40, em uma comunidade rural formada por imigrantes libaneses, no centro dela está a conservadora família de André, constituída sobre um rígido moledo patriarcal no qual o pai (brilhantemente interpretado pelo Raul Cortez) exerce absoluto controle.
Tomado por uma avassaladora paixão, que contraria a moral e os princípios defendidos pelo pai, André foge e vai viver sozinho em um quarto de pensão, longe da abundância de recursos que tinha em sua casa. Sua partida afeta toda a família e deixa evidente a fragilidade de tudo aquilo que tinha sido construído até então. A mãe do rapaz (vivida pela Juliana Carneiro da Cunha) se torna ainda mais melancólica e Ana (Simone Spoladore), uma de suas irmãs, se fecha ainda mais em seu mundo particular de orações e penitências. Vendo a ruína para a qual sua casa caminha, Pedro (Leonardo Medeiros), o primogênito, vai em busca de André com o intuito de persuadi-lo a voltar. O encontro entre os dois é o ponto de partida para as inúmeras reminiscências e devaneios, dos quais a trama é composta, que nos conduzem de volta para a infância e para a juventude de André, épocas nas quais estavam sendo edificadas as bases daquilo que mais tarde o levaria à fuga da fazenda onde fora criado.
A história de Lavoura Arcaica é uma espécie de reconstrução da parábola do filho pródigo e nela, tal como na bíblia, a figura do pai é uma representação de Deus, enquanto os filhos representam os homens e suas debilidades. Todavia, a história original evoca tão somente a essência de uma divindade capaz de perdoar e apta a reatar um relacionamento rompido; já no filme, o deus representado pela figura paterna é bom, mas autoritário, emocionalmente distante e incapaz de compreender a dor e a fraqueza do filho - o que percebo como um misto de crítica e questionamento herdado da obra literária. Outra leitura possível diz respeito à família patriarcal e sua constituição; em diversas passagens do filme pode ser percebida a posição que o pai ocupa diante do restante da família (o que também tem a ver com sua associação ao deus bíblico). Na trama, a autoridade e a sabedoria do pai são incontestáveis enquanto que a figura da mãe evoca fraqueza e inconstância, atributos que imputam nela a culpa por qualquer mal que venha a afligir a família...
"Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições ou na hora dos sermões: O pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinham primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as suas raízes. Já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, pela carga de afeto." - Neste trecho da narração em off feita pelo André pode ser percebida a forma com que o modelo patriarcal rompe com a unidade, criando no seio familiar dois seguimentos distintos, um deles formado por aqueles que tiveram suas individualidades aniquiladas pela submissão ao patriarca e outro por aqueles que o contestam, ainda que de forma velada, com os seus respectivos comportamentos.
Em um de seus sermões à mesa, o pai defende a negação das paixões, a busca de sentido no trabalho duro: "O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio. Cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista. Erguer uma cerca, guardar simplesmente o corpo, são esses os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro. É através do recolhimento que escapamos ao perigo das paixões. Mas ninguém, no seu entendimento, deve achar que devamos sempre cruzar os braços, ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a terra para lavrar; ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer; ninguém ainda, em nossa casa, há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer..." Tomado por boas intenções, ele acredita que isso possa trazer o equilíbrio para sua família, mas, mal sabe ele que nestes princípios pode estar a causa da ruína dela. Seu apego à tal doutrina o tornou cego diante do clamor do filho doente, que não consegue se fazer compreendido...
O dilema moral vivido por André é muito bem trabalhado no filme, outra óbvia herança da obra literária. Em momento algum o roteiro tenta defender ou justificar aquilo que o atormenta, afinal de contas trata-se de uma questão moral que é tabu em praticamente todas as culturas. É interessante perceber que nem o próprio personagem espera realizar aquilo que ele anseia de forma tão compulsiva. Ele não espera que sua família aceite sua imoralidade, na verdade ele quer apenas ser compreendido. A liberdade que ele reivindica não é a de fazer o que bem quiser, mas a de pedir ajuda. Ele quer poder chegar ao pai e ser entendido, mas entre os dois há um muro enorme, forjado pelas crenças e pelos dogmas que norteiam cada atitude do progenitor. O silêncio diante do sofrimento filho e a falta de compreensão (intensificada pela rigidez moral) são outros aspectos que podem ser associados à representação de Deus forjada pela obra. Neste ponto, é como se o filho reconhecesse sua própria condição miserável, mas fosse impedido de se achegar ao pai pela barreira que existe entre eles (o legalismo religioso).
Diferente de André, Pedro, o filho mais velho, é um homem de caráter reto e irrepreensível, seu comportamento justifica o fato de ele ser o primeiro à direita do pai na 'hierarquia familiar', no entanto, ele começa a mudar depois que reencontra o irmão. Ele se atormenta ao ser posto em contato com a agonia de André e de repente vemos toda a sua aparente força se desmoronar diante de verdades que ele jamais imaginava encontrar. É como se tudo aquilo em que ele acredita estivesse sendo colocado em xeque e isso o deixa em alguns momentos em um estado de agonia similar ao vivenciado pelo irmão. Ao voltarem para casa, estão os dois já transformados, Pedro mais do que André, o que nos leva à percepção de que as trevas de um lado contaminaram a luz do outro, tal como o pai temia. Perceber isso é de fundamental importância para que compreendamos, ao menos em parte, o porquê do tormento de André - O que acontece com Pedro é justamente aquilo que ele não queria que acontecesse com a família como um todo...
Lavoura Arcaica é uma tragédia com um pé fincado no barroco e outro no arcadismo. Da primeira escola artística ele herdou o flerte ambíguo com o sagrado e com o profano; da segunda, a exaltação da natureza como uma entidade suprema capaz de trazer a paz para um indivíduo aturdido por sua própria humanidade (o que fica evidente nas passagens em que André roça o pé na terra, ou se cobre com folhas secas numa vã tentativa de fugir de algo que está dentro de si). O filme funciona, em uma última instância, como um contundente estudo sobre o indivíduo e sua relação, muitas vezes conflituosa, com fatos sociais que são anteriores a ele, como a moral constituída, os dogmas religiosos e a organização familiar. Partindo de tal perspectiva, pode-se afirmar que ele tem a potencialidade de se tornar um excelente objeto para análise e debate de diversas questões sociológicas e antropológicas, devido à forma com que ele aborda o choque entre o indivíduo e o meio no qual está inserido, que é no fim das contas algo muito maior e mais complexo do que um mero conflito entre gerações.
A direção de fotografia, assinada pelo Walter Carvalho, irmão do Luiz Fernando, pode ser classificada como experimental e antes de tudo autoral, o que não é nenhum exagero, uma vez que está na iluminação, na escolha das perspectivas de filmagem e na construção de cada plano uma boa parcela da carga de significação e representação que o filme tem (eu ousaria dizer que a parcela de sua linguagem que não foi herdada do livro se encontra, em sua quase totalidade, nos elementos cinematográficos não verbais, como fotografia, direção de arte e montagem). A trilha sonora composta por Marco Antônio Guimarães é uma preciosidade de igual tamanho. Com uma notável influência da música árabe, cada canção evoca sentimentos e sensações que estão em plena harmonia com aquilo que vemos. Há de fato um casamento perfeito entre imagem, som e narração, algo tão belo e perfeito, que só encontro similares em A Árvore da Vida (2011) de Terrence Malick e em Hiroshima meu Amor (1959) de Alain Resnais.
O intenso trabalho de preparação do elenco, que incluiu oficinas de canto, dança, ordenha, bordado, história da religião, mitologia, literatura, filosofia e cultura árabe, gerou resultados que podem ser notados nos desempenhos de todo o elenco. O Selton Mello está sublime, nesta que é de longe a sua melhor atuação, sua entrega ao personagem é tão visceral quanto a composição do mesmo. O Leonardo Medeiros, que também dá vida a um personagem com considerável nível de complexidade, entrega uma atuação consistente e sem nenhuma aresta a ser aparada. A belíssima Simone Spoladore demonstra seu enorme talento ao interpretar outra personagem complexa, sem precisar dizer uma só palavra durante todo o filme (prestem atenção nas duas cenas de dança, nas quais ela rouba o foco para si e na forma com que ela, através dos movimentos, traz para sua Ana auras distintas em cada um destes momentos). A Juliana Carneiro da Cunha, por sua vez, consegue evocar através de sua interpretação a dor, a melancolia e a força contida de sua personagem, tudo isso de uma forma extremamente sutil. O saudoso Raul Cortez é um monstro em cena, sua atuação dispensa qualquer comentário...
Lavoura Arcaica é uma obra-prima, uma convergência perfeita entre cinema e literatura. Muitos criticaram o Luiz Fernando Carvalho por ele ter se mantido tão fiel ao livro que deu origem ao filme, no entanto, estes negligenciam o fato de que tal fidelidade não tira da obra cinematográfica a marca autoral que ela tem. O peso da mão do cineasta e seu perfeccionismo podem ser notados na composição de cada plano e, como eu disse anteriormente, estes constituem uma linguagem própria que vem somar e enriquecer aquela advinda da narrativa puramente literária. Lavoura Arcaica não só um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos, mas também uma obra seminal do cinema mundial, que está á altura de alguns dos maiores clássicos da sétima arte; defendo isso sem medo de estar pecando pelo exagero... A experiência que Lavoura Arcaica é capaz de nos proporcionar é única, quase religiosa, um genuíno contato com a arte em sua forma mais sublime!
Lavoura Arcaica ganhou o prêmio de Melhor Contribuição Artística no Festival de Montreal; Melhor Filme, Ator (Selton Mello), Atriz Coadjuvante (Juliana Carneiro da Cunha) e Ator Coadjuvante (Leonardo Medeiros) no Festival de Brasília; Melhor Filme, Diretor, Fotografia e Trilha Sonora no Festival de Catagena; Melhor Ator (Selton Mello), Fotografia, Trilha Sonora e Prêmio Especial do Juri no Festival de Havana; Melhor Fotografia de Longa Metragem no ABC Trophy; Prêmio ADF de Fotografia, Prêmio do Público, Prêmio Kodak e Menção Especial para Luiz Fernando Carvalho no Festival de Buenos Aires do Cinema Independente; Melhor Filme pelo Juri Internacional no Festival de Guadalajara; Melhor Atriz (Juliana Carneiro da Cunha) e Fotografia no Grande Prêmio BR de Cinema e Prêmio do Público na Mostra de São Paulo.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
Olá, gostei muito de sua postagem e compartilhei o link na fanpage do ator Leonardo Medeiros.
ResponderExcluirAbraço
Élly
https://www.facebook.com/LeonardoMedeirosAtor
De fato, Lavoura Arcaica é uma obra-prima mesmo. Um filme intenso, com grandes atuações. Além de uma parte técnica irretocável. Grande fotografia!!! Pena que esse diretor tá sumidão. Parabéns pelo texto, um dos teus melhores aqui.
ResponderExcluirBruninho,
ResponderExcluirQue texto primoroso sobre esse filme, que ao lado de Bicho 7 Cabeças, brindam nosso País com um pouquinho do que poderia ser nossa sétima arte ;)
Amei seu texto, muito, mesmo!
beijos
O livro, na primeira parte, resume-se a um solilóquio delirante do personagem André. Na segunda parte, um deus-ex-machina sem mais vem e acaba com tudo, o mundo certinho do pai e o futuro de Ana e, em ponto menor, de André e dos outros irmãos. O tema foi, ao meu ver, muito mal desenvolvido.
ResponderExcluirUm livro como Lavoura Arcaica não é, ao meu ver, transponível para o cinema. O diretor do filme contrapõe, aos textos transcritos literalmente, as correspondentes imagens de sua imaginação. Mas o telespectador se vê a braços com uma briga entre as imagens que ele, espectador, cria a partir do texto falado, e as imagens que o diretor criou a partir do mesmo texto. Resulta numa algaravia.