O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin) - 1925. Dirigido por Sergei M. Eisenstein. Escrito por Sergei M. Eisenstein e Nina Agadzhanova. Direção de Fotografia de Vladimir Popov e Eduard Tisse. Música Original de Nokolai Kryukov, Edmund Meisel e Dimitri Shostakovich. Produzido por Jacob Bliokh. Goskino e Mosfilm / URSS.
Enquanto militares reprimem uma manifestação popular, algo inusitado acontece, uma mulher que estava junto com um bebê é atingida pelo disparo de uma arma de fogo e acaba soltando o carrinho com a criança, que se precipita pela escadaria à sua frente. O carrinho desce degrau por degrau delineando um caminho entre corpos de militantes mortos e outros feridos. Nesta sequência a montagem, que nos diz no filme muito mais que poderiam dizer as palavras, deixa evidente diversos significados que estariam ocultos naquele fato. Entendo que de alguma forma aquela criança represente o futuro, o porvir utópico que está ameaçado pela brutalidade das classes dominantes, isto explica porque mesmo em meio a tudo que está acontecendo naquele local, algumas pessoas percebem o risco que o bebê corre e se alarmam. A edição não nos permite saber ao certo o que aconteceu com a criança, como se deixasse algo em aberto, algo a ser posteriormente reparado, tal incompletude é o que incitaria os espectadores a tomar alguma atitude contra toda a ameaça representada no filme ora pela hierarquia do navio Potemkin, ora pela repressão do exército.
A sequência da escadaria de Odessa continua sendo até hoje uma das mais clássicas e emblemáticas da história do cinema e injustamente o filme continua sendo lembrado em muitas situações apenas por causa do impacto destas cenas. Quem tiver a oportunidade de assistir a versão com o filme na íntegra, irá descobrir uma obra de excelente profundidade dramática e com uma carga ideológica que vai muito além de uma mera propaganda política, como alguns críticos insistem em afirmar. Cenas como a do motim no navio, a dos vermes na carne apodrecida, a da homenagem a um marinheiro morto e a do encontro com um navio supostamente inimigo são mínimo esplêndidas. Desde a época da faculdade, quando estudamos superficialmente a história do cinema, eu ouvia comentários sobre os filmes de Sergei Eisenstein e a chamada montagem dialética, no entanto eu não imaginava o efeito que isso poderia me provocar. O ritmo que o cineasta deu a este filme, em meados da década de 20, é surpreendente e perceptível em pouquíssimas produções nos dias de hoje.
Antes de enveredar pelos caminhos da sétima arte, Eisenstein já tinha criado e desconstruído diversas teorias sobre a montagem teatral, de tais reflexões surgiu o conceito de montagem de atrações, que defendia a ideia de que em uma encenação teatral, os diversos elementos que a compunham funcionariam como uma sistemática que em conjunto levaria o espectador a refletir sobre aquilo a que estava sendo exposto. Eisenstein colocaria esta teoria em prática também em seus filmes. O artifício que ficou conhecido como montagem dialética seria uma adaptação da montagem de atrações para a linguagem cinematográfica. Na dialética, uma situação vigente chamada de tese, tenderia a gerar sua própria contradição, chamada de antítese, o choque entre a tese e a antítese levariam a uma síntese, que seria conforme pressuposto algo maior do que a simples soma das duas situações que a geraram. Conforme defendia Eisenstein, em seus filmes cada cena seria uma atração, ou tese, a própria montagem forneceria a síntese e o espectador seria estimulado (condicionado, segundo alguns críticos) a produzir a sua própria síntese.
O Encouraçado Potemkin (1925) foi todo idealizado com base nesta teoria, de fato o diretor explora com grande destreza cada um dos conflitos que reproduz. A sequência da escadaria de Odessa é uma boa ilustração de tudo isso, nestas cenas os Cossacos, o exército czarista, é mostrado sempre de longe, nunca conseguimos enxergar nitidamente seus rostos, ao contrários das pessoas simples do povo, que são mostradas por diversas vezes em close-up. Podemos ver ai uma relação dialética, nós tendemos a enxergar na figura dos soldados a brutalidade e a desumanização e nos rostos abatidos dos populares a dor e o sofrimento, o que nos leva ao repúdios dos primeiros e à uma identificação com os flagelados, a nossa síntese. Tal efeito, que poderia ser tido como manipulação, não acontece com perfeição na prática, afinal ninguém termina de ver o filme e decide começar de imediato uma revolução, no entanto, tendemos a receber melhor uma ideia, quando encontramos por nós mesmos a sua síntese. Mas tudo isso, acreditem, explica somente em parte a genialidade da obra e do cineasta.
O Encouraçado Potemkin, que teria sido inspirado em um acontecimento real, narra o motim de marinheiros em um navio, que acontece devido às péssimas condições de trabalho a que eles estavam sujeitos e tem seu estopim quando a tripulação é obrigada a comer uma carne apodrecida tomada por vermes. Os marinheiros assumem o controle e os oficias que comandavam o navio, juntamente com um padre e o médico que atestara a qualidade da carne, são atacados, alguns são mortos e outros lançados ao mar. Quando a embarcação é ancorada no porto da cidade de Odessa, sua tripulação é recebida com honras pela população local. O homem que começara o motim, que morrera em combate se torna então uma espécie de mártir e seu corpo fica exposto em um tenda no cais. A população engajada na causa dos marinheiros vê na coragem daqueles homens um impulso para sua própria libertação, discursos revolucionários são bradados para a multidão e tudo indicava que a revolução começaria ali, naquele mesmo dia, no entanto os Cossacos chegam furiosos e um verdadeiro massacre começa.
A revolução russa pode não ter conseguido manter nas décadas seguintes a utopia e o desejo de liberdade que guiava tanto o povo, quanto intelectuais como Eisenstein, alguns críticos e cinéfilos podem até acusar o filme de ser dogmático e manipulador, mas eu o defendo. O Encouraçado Potemkin transcende o contexto no qual foi produzido, pois ele é antes de tudo um filme sobre a luta pela liberdade e pela igualdade e sobre aquele sentimento nobre que acende a chama do desejo por mudanças, chamado de utopia. Se a revolução então idealizada pelos bolcheviques permanece até hoje apenas como uma abstração, se o capitalismo continua produzindo suas antíteses, sem uma síntese que nos satisfaça, se aqueles que lutaram na esperança de que o bebê chegasse a salvo ao final de sua trajetória morreram em vão, nada disso diminui a excelência desta obra. A trama do filme está repleta de mártires, mas sem alguém que personifique o herói, pois este não é necessário, aqui o herói é o povo unido e o ato de bravura é o engajamento. O Encouraçado Potemkin vale não só pela sua trama e montagem, mas também pela fotografia, enquadramentos e estética, que em conjunto o transformam numa das obras mais importantes e influentes do cinema. Ultra recomendado!
Confiram no You Tube uma parte da sequência da escadaria de Odessa,
Olá Bruno, adorei a crítica. Eu poderia colocar essa crítica, com os devidos créditos, claro, no site cinema clássico?
ResponderExcluirPost indicado nos links da Semana.
ResponderExcluirhttp://blogsdecinemaclassico.blogspot.com/2011/10/links-da-semana-de-24-30-de-outubro.html
Seria uma honra Carla! Pode colocar sim e fico muito feliz que você tenha gostado!
ResponderExcluirPublicado, Bruno: http://cinemaclassico.com/index.php?option=com_content&view=article&id=5264:o-encouracado-potemkin&catid=44:colaboradores&Itemid=125
ResponderExcluirValeu!
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